Confira a íntegra da carta elaborada pelos governadores do Nordeste sobre a possibilidade de privatizações no setor elétrico.
Senhor Presidente,
Os meios de comunicação têm divulgado com alarde informação segundo a qual o Governo de Vossa Excelência decidiu promover uma ampla reestruturação do setor elétrico brasileiro.
Motivados unicamente pelo propósito de contribuir com o melhor andamento possível desse serviço essencial à vida e à economia brasileira, e depois de ponderado exame, tomamos a iniciativa de nos dirigir a Vossa Excelência para pedir esclarecimentos, ao tempo em que nos colocamos à disposição para debater o tema, fazer sugestões e, na medida do possível, compartilhar responsabilidades sobre os encaminhamentos adotados.
Pelo que foi divulgado, as mudanças em gestação podem ser agrupadas em três linhas:
1 – Revisão do Marco Legal do setor
2 – Descotização do mercado energético
3 – Privatização da Eletrobras
Discorreremos brevemente sobre cada um desses tópicos para deixar clara a nossa compreensão.
Novo Marco Legal
Sobre a nova regulamentação do setor, discutida em audiências públicas e na iminência de ser enviada ao Congresso Nacional, entendemos que a proposta introduz robustas mudanças nas regras atuais.
Altera as condições para acesso ao mercado livre, retira a obrigação das distribuidoras contratarem 100% do seu mercado previsto, altera custos de transação na transmissão, modifica regras de formação de preços, altera a forma de contratação de energia criando contrato de Lastro e Energia, traz novas regras para fixação de tarifas, altera subsídios a fontes alternativas, retira do regime de cotas a energia produzida por usinas amortizadas e a coloca no mercado, destina recursos para a revitalização do Rio São Francisco, retroage as mudanças sobre risco hidrológico a 2013 para desjudicializar a questão, entre outros.
O problema é que deixa para serem tratados administrativamente, ou seja, em normativa infra legal, os seguintes importantíssimos aspectos:
a) no capítulo que propõe, para os novos leilões, a separação de Lastro e Energia, fica para depois a repartição dos custos e as regras para os contratos atuais que não tiveram essa separação;
b) propõe alterar a realocação dos riscos hidrológicos, mas informa que há um grupo técnico estudando o detalhamento da proposta;
c) abre os caminhos para grandes mudanças na formação de preços para o mercado, mas a proposta fica no campo meramente conceitual;
d) igualmente em aberto ficam os critérios para formação dos preços das tarifas.
Descotização
Ainda sem muitos detalhes, dá-se como definido que o Governo tenciona suprimir o regime de cotas implantado através da Medida Provisória 579/2012, editada na administração passada.
Com o regime de cotas, as hidrelétricas passaram a entregar a energia às distribuidoras por um preço fixado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), preço este que cobre apenas custos de operação e manutenção. Isso foi possível porque as usinas mais antigas já haviam tido seus custos de implantação amortizados durante os anos de operação e poderiam, a partir de então, vender a produção a preço de custo para beneficiar o consumidor.
Em consequência, desde 2013 cerca de 20% da energia alocada no mercado regulado é “comercializada” a preços atuais por valores entre R$ 40 e R$ 80 o MWH.
Hoje, a quase totalidade dessas usinas é operada pelo grupo Eletrobras, com contratos de concessão firmados em 2013 e prazo final em 2043. A descotizacão significará o rompimento desses contratos. Na opinião dos técnicos da ANEEL, a modificação pretendida acarreta riscos de instabilidade setorial, ao abalar a segurança jurídica dos contratos vigentes.
Liberada do regime de cotas, fatalmente a energia “velha” será recolocada no mercado por algo em torno de R$200/MWH, a preços de hoje.
Privatização da Eletrobras
Quando foi criada, nos anos sessenta, a Eletrobras tinha a dupla missão de supervisionar as empresas a ela vinculadas e de planejar a expansão e operação do sistema elétrico brasileiro, conduzido em sua maior parte pelas suas empresas coligadas – Chesf, Furnas, Eletronorte, Eletrosul, Eletronuclear e Itaipu Binacional.
Praticamente todas as atividades técnicas inerentes ao poder concedente – o Governo Federal, por meio do Ministério de Minas e Energia (MME) – eram exercidas pela Eletrobras. O ministério, através do Departamento Nacional de Aguas e Energia – DNAE, atuava apenas como órgão regulador de tarifas. Ela também atuava como o braço financeiro do setor, administrando fundos e captando recursos para investimentos.
A partir de 1995, com a implantação de um novo Marco Legal, foram criados o Operador Nacional do Sistema (ONS), a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e outras áreas especializadas no MME. Todas essas entidades assumiram tarefas até então cometidas à Eletrobras, restando a ela, somente, a missão de atuar como holding do setor.
Portanto, a venda da Eletrobras nada mais é do que a privatização das empresas cujo controle acionário lhe pertence, e reside neste aspecto, e somente nele, o interesse que eventualmente possa despertar no mercado.
Diante dos planos e pretensões acima sumariamente descritos, e tomando por base estudos realizados por técnicos independentes e pela própria Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, julgam os governadores de Estados do Nordeste subscritores do presente ser indispensável chamar a atenção e pedir a devida consideração para os seguintes aspectos:
a) as medidas anunciadas, especialmente a suspensão do regime de cotas, terão como consequência imediata e inevitável um aumento significativo na conta de energia dos brasileiros;
b) a transferência para investidores privados do controle operacional das usinas do Sistema Eletrobras, particularmente daquelas geridas pela Chesf, condicionará por décadas todo projeto ou ação que demande água do Rio São Francisco.
No que diz respeito ao ponto 1, nos respaldamos no pronunciamento oficial da ANEEL, que estima o reajuste da conta de luz em percentuais que variam de 7% a 17%.
É fato que membros da equipe do governo têm se esmerado em negar aumento de custo da energia para o consumidor final. As negativas, porém, não são apoiadas em informações capazes de contraditar o parecer técnico oficial da agência reguladora.
Há que se considerar ainda o histórico das privatizações brasileiras que, prometendo sempre melhorar a qualidade e baratear as tarifas, costumam levar a resultados insatisfatórios, como podem verificar os clientes de operadoras de telefonia celular, extremamente deficientes.
Quanto ao ponto 2, lembramos que o passo seguinte à descotização será a realização de leilão de outorga, por trinta anos, da energia gerada pelas usinas da Chesf (e também das outras geradoras). Assim, estaremos de fato privatizando as usinas, repassando-as a investidores por, pelo menos, trinta anos.
Note-se ainda que, como todas essas usinas são movidas a água, o processo compromete previamente a vazão dos rios necessária à geração da energia contratada, ficando prejudicado qualquer outro uso atual ou futuro. No caso particular do Rio São Francisco, a recorrência de ciclos hidrológicos críticos, como o vivenciado no Nordeste ao longo da presente década, já recomendariam cautela antes de se colocar em pauta qualquer projeto de transferência da operação para investidores privados.
A propósito, é oportuno reler artigo publicado pelo ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes no jornal Folha de S. Paulo em 20 de maio de 1999, quando se falava abertamente na privatização da Chesf. No texto, intitulado “Vende-se o Rio São Francisco”, o histórico líder brasileiro lembrava que, se as usinas e a própria empresa tinham algum valor de mercado, valioso mesmo era o rio que as alimentava.
Dizia ele, na época, quando a transposição ainda era projeto:
“Nas últimas décadas, a água do rio vem sendo objeto de feroz disputa política. Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas projetam irrigar 3 milhões de hectares de terra nos próximos anos. Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba, que não estão nas margens do rio, mobilizam suas bancadas em defesa de projetos de transposição de águas. Todos acalentam com entusiasmo a ideia de consolidar a hidrovia do São Francisco. De que modo essas necessidades podem ser compatibilizadas com a atuação privada, que visa o lucro? ”
São questões que ainda hoje reclamam respostas convincentes.
Vozes de diferentes quadrantes técnicos e políticos pedem, no mínimo, o aprofundamento do debate, enquanto questionam aspectos e pedem esclarecimentos.
A essas demandas acostamos as nossas, não por duvidarmos dos propósitos de Vossa Excelência e de seus auxiliares, mas por entendermos ser do interesse de todos – inclusive, e principalmente, do Governo – que nunca pairem dúvidas sobre o que se pretende ao propor mudanças estruturais em setores de tamanha relevância econômica e social.
Filtra-se dos noticiários, por exemplo, a visão segundo a qual as medidas não teriam como alvo apenas o aumento da eficiência do setor elétrico, sendo motivadas também pela necessidade de socorrer as finanças do Governo com os recursos captados nas operações.
Os valores pretendidos são revelados em notícias da Imprensa. A privatização da Eletrobras daria ao governo a chance de levantar R$ 20 bilhões. Os leilões das usinas descotizadas gerariam outro montante na casa dos R$ 30 bilhões. Somente no leilão das usinas da ex-CEMIG (2.900MW), que será realizado nos próximos dias, a arrecadação passaria de R$ 11 bilhões. Como a capacidade das demais usinas cotizadas é de 29.000MW, ou seja, dez vezes mais, estima-se que os valores financeiros cresçam na mesma proporção.
Fica clara, portanto, a necessidade de que sejam descartadas tais versões, uma vez que estaria configurada uma inversão de prioridades.
Entendemos que um setor que exerce tamanho impacto sobre todas as cadeias produtivas e camadas sociais não deve, em hipótese alguma, financiar ou cobrir déficits no caixa do Governo.
Obviamente não desconhecemos a desafiadora conjuntura econômica e entendemos que esforços extraordinários precisam ser feitos por todos em todas as esferas. Mas uma política que drene recursos da economia para o Estado via aumento da tarifa energética terá efeitos colaterais que neutralizarão qualquer resultado positivo buscado. Como se não bastasse, configuraria uma tributação adicional encoberta que é ilegal e inaceitável.
É preciso enfatizar que a contratação com investidores privados de vazões do Rio São Francisco para a produção de energia é medida que limita o uso múltiplo das águas. Com isso, põe em risco a segurança hídrica de numerosa população e ainda desestimula que levemos adiante estudos e planos para outros usos da água, no que podemos estar comprometendo o futuro de gerações.
Quanto ao Rio São Francisco e a Chesf, lembramos que a empresa tem suas usinas dispostas em cascata num dos mais importantes rios brasileiros que, se for levado em conta o fato de banhar grande parte do semiárido nordestino, chega-se, sem dúvida à conclusão de que é ele o mais importante rio deste país. A Chesf atua justamente neste trecho da vazão regularizada desde a barragem de Sobradinho.
Recentemente, com o início da operação dos canais da transposição para Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Pernambuco, ficou evidenciado o quanto é importante para a região a destinação das águas para outros fins que não o de gerar energia elétrica.
Em razão de tudo isso, deixamos claro que nós somos contra a privatização da Eletrobras e das empresas a ela vinculadas. E, como contribuição à busca de soluções para os problemas do setor, propomos:
1 – Excluir a Chesf do grupo Eletrobras, transformando-a numa empresa pública, vinculada ao Ministério da Integração Nacional;
2 – Manter o contrato de concessão das usinas cotizadas, cujo prazo se encerra em 2043;
3 – Adicionar à tarifa da energia cotizada um percentual que assegure à Chesf: concluir o plano de obras já contratado com a ANEEL em leilões anteriores e assegurar um investimento contínuo em fontes alternativas; operar e manter o PISF; fornecer energia sem custo para o PISF, e executar o Plano de Revitalização do Rio elaborado pela ANA.
4 – Criar um grupo de alto nível para unificar num só órgão de desenvolvimento regional o Dnocs, a Sudene, a Codevasf e a Chesf. Os recursos para a atuação do órgão seriam oriundos da receita da energia cotizada. O efeito sobre as tarifas de energia em todo o Brasil, segundo técnicos do setor, seria da ordem de no máximo 1,5%. Esse valor é menos da metade do que pagamos durante três décadas para ajudar os sistemas isolados através da Conta de Compensação de Combustíveis – CCC.
5 – O grupo deve propor um modelo de governança transparente e blindado às ingerências políticas e partidárias.
Esperando ter oportunidade de detalhar e debater estas propostas, renovamos votos de estima e consideração.
Atenciosamente,
José Renan Vasconcelos Calheiros Filho
Governador de Alagoas
Rui Costa dos Santos
Governador da Bahia
Camilo Sobreira de Santana
Governador do Ceará
Flávio Dino de Castro e Costa
Governador do Maranhão
Ricardo Vieira Coutinho
Governador da Paraíba
Paulo Henrique Saraiva Câmara
Governador de Pernambuco
José Wellington Barroso de Araújo
Governador do Piauí
Robinson Mesquita de Faria
Governador do Rio Grande do Norte
Jackson Barreto de Lima
Governador de Sergipe