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Duas Metades

Por: Milton Oliveira

Tenho, em mim, duas metades assimétricas, que se completam perfeitamente, não obstante a variedade de suas porções.

Na parte maior, guardo tudo que me causa aborrecimento; é para lá que vão as gratuitas grosserias recebidas no dia a dia; os insultos por causa das barbeiragens que, às vezes, faço no trânsito; as críticas que me fazem, sem terem certeza do que dizem; agem assim só para me desqualificar, como se eu não tivesse sentimento.

Quando um filho me faz malcriações, ou mesmo quando não compreende a razão que me leva a não atender determinado pedido seu, já que fiz tanto por ele – sempre de coração aberto –, que custa me compreender uma vez? Mas não! Então, é nessa incômoda metade que deposito esse tipo de desgosto.

Quando a pessoa, que se encontra ao meu lado, age comigo diferente da forma que é tratada. Sei que não deveria fechar a cara e manter-me no mutismo até o momento de conversarmos e esclarecermos o mal-entendido, mas não encontro outra maneira de proceder, senão encaracolando-me. E assim, triste, armazeno esse enfado sobre os demais já existentes no meu almoxarifado.

É nessa metade abusiva que empilho minhas queixas, minhas frustrações, meus desânimos. Nas prateleiras mais altas estão os lenços, ainda umedecidos pelas lágrimas que derramei em silêncio, quase sem esperança alguma. E, por trás deles, nas caixas negras, guardo as dores dos amores desfeitos, junto aos fragmentos do meu coração amargurado e os retalhos puídos de minha alma enlanguescida pelos meus pesares.

No canto esquerdo, ao fundo, porque é nesse lado que empilhamos nossos desgostos sempiternos, encontram-se as lembranças dos meus entes queridos, que já se foram; suas vozes, seus sorrisos, tudo que me possa fazer lembrar que eles, um dia, estiveram ao meu lado e enriqueceram minha existência.

O lado escuro da vida é armazenado nesse vasto espaço estéril. Nessa metade descomunalmente maior, guardo tudo que me provoca insatisfação. Tão grande ela é, não sei como sobra espaço para mais alguma coisa, já que sou franzino.

É, no entanto, na outra porção, a menor, tão acanhada, terna e meiga, que se encontra minha capacidade de compreender e perdoar. É nela que guardo a luz a iluminar minha razão e, em momentos de dor e solidão, ela me ensina a conversar com Deus.

É nesse lado imensamente menor onde estão plantadas as sementes do amor e da felicidade, indispensáveis aos enxurros dos risos e da lucidez, tenazes argamassas na edificação da dignidade e da humildade obrigatórias ao homem sensato.

Porque só é feliz aquele que engalana sua alma com a modéstia e clareia sua consciência com o saber divino.

Portanto, não é só o desconforto do tamanho das minhas duas metades assimétricas que me faz ser o que sou.

É, justamente, a porção menor, na sua singularidade, que me torna grande e termina sendo a maior e a mais importante do meu corpo.


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