Por Elisa Clavery e Luiz Felipe Barbiéri, TV Globo e g1 — Brasília
Um levantamento ainda inédito do Transparência Brasil sobre a divisão das chamadas “Emendas PIX” em 2023 aponta para uma discrepância na divisão de recursos entre municípios e aportes milionários para cidades de até 10 mil habitantes.
Enquanto há cidades que devem receber mais de R$ 4 mil per capita, outras devem ter menos de R$ 1 por habitante.
Esse tipo de emenda, criado em 2019, ficou conhecido pela dificuldade na fiscalização dos recursos.
Os valores são transferidos por parlamentares diretamente para estados ou municípios sem a necessidade de apresentação de projeto, convênio ou justificativa – por isso, não há como saber qual função o dinheiro terá na ponta.
Por causa da falta de um plano de aplicação dos recursos, essas emendas ganharam o apelido de “Emendas PIX”. Oficialmente são chamadas de “transferência especial”.
Na última quarta-feira (5), véspera da votação da reforma tributária, o governo empenhou R$ 5,25 bilhões em emendas nesta modalidade.
Os dados do levantamento foram extraídos do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (Siop) no dia 5 de julho e consideram as minutas de empenho publicadas pelo Executivo até o momento – uma fase prévia ao empenho, que é efetivamente a reserva de recursos para o pagamento.
A análise contemplou R$ 6,38 bilhões dos R$ 7 bilhões previstos para essas emendas em 2023. Os demais valores ainda não tinham minuta de empenho registrada.
Consideradas apenas as 1.816 cidades com menos de 10 mil habitantes que receberão recursos, as minutas de empenho indicam que seis municípios devem receber, cada um, mais de R$ 10 milhões. Outros 123 tiveram indicações de R$ 100 mil ou menos.
O levantamento aponta ainda que:
385 cidades receberão R$ 1 milhão ou mais;
137 receberão R$ 2 milhões ou mais;
65 receberão R$ 3 milhões ou mais;
22 receberão R$ 5 milhões ou mais.
Histórico das emendas
As “Emendas PIX” foram criadas em 2019, por meio de uma proposta de Emenda à Constituição (PEC) de autoria da deputada e presidente do Partido dos Trabalhadores, Gleisi Hoffmann (PT-PR) e relatada pelo deputado Aécio Neves (PSDB-MG).
Segundo o texto, essas emendas de “transferência especial”:
são repassadas diretamente ao município ou estado beneficiado, independentemente de celebração de convênio ou de instrumento congênere;
pertencem ao estado ou município no ato transferência; e
são aplicadas em programações escolhidas pelas prefeituras ou governos estaduais.
Na ocasião, os parlamentares defenderam a medida como forma de desburocratizar o uso das emendas parlamentares e dar maior agilidade à liberação das verbas.
Como esses recursos são uma modalidade das emendas individuais, os autores da indicação são conhecidos – ao contrário do orçamento secreto, declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no ano passado.
O problema, na avaliação de especialistas, é que não há qualquer obrigação de prestar contas sobre a finalidade desses recursos.
Em março deste ano, o Tribunal de Contas da União (TCU) entendeu que a fiscalização sobre a regularidade dessas despesas é de competência dos órgãos locais, incluindo os tribunais de contas de cada região.
A diretora de programas da Transparência Brasil, Marina Atoji, alerta que, como não há necessidade de apresentar um projeto ou plano para a aplicação desses recursos, “na prática, o dinheiro pode ir para áreas que não são as prioritárias para a população”.
“Além disso, a aplicação de um grande volume de recursos federais fica dispersa, desconectada das estratégias da administração pública federal”, afirma.
“A prestação de contas do uso desse recurso fica espalhada nos portais de transparência de cada estado e cidade. Isso torna impossível que alguém – inclusive o próprio governo federal – verifique onde e em que cada um dos centavos que saiu dos cofres federais por essa via foi aplicado.”
Distribuição per capita
A distribuição per capita desses recursos chama atenção. A cidade campeã de valores por habitante é São Luiz (RR), com população de 8.232 pessoas. O município receberá, pelo menos, R$ 37,8 milhões em 2023 – o que dá cerca de R$ 4,6 mil per capita.
A proporção é muito diferente, por exemplo, do que receberá Teresina (PI). Para a capital do Piauí, onde vivem 871.126 pessoas, foram liberados R$ 51.646. A média per capita fica em R$ 0,06.
Segundo as minutas de empenho já publicadas, 23 cidades têm a previsão de receber menos de R$ 1 per capita, incluindo Teresina.
Em contrapartida, 32 cidades – entre elas, São Luiz – devem receber mais de R$ 1 mil por habitante. A diferença mostra a discrepância na liberação das Emendas PIX.
Marina Atoji afirma que a discrepância na divisão per capita “indica como a distribuição dos recursos federais via ‘Emendas PIX’ é desigual e não é baseada no interesse público”.
“A diferença na distribuição per capita evidencia que as Emendas PIX destinam um enorme volume de dinheiro a locais que não têm demanda suficiente para justificar o recebimento desses montantes – às vezes, nem estrutura para gastar esse recurso da melhor forma”, afirma.
Segundo ela, “às vezes, bilhões dos cofres públicos são, na prática, desperdiçados”.
“Na melhor das hipóteses, vão para ações que não melhoram a vida da população. Na pior, além de não melhorar a vida das pessoas, o recurso é desviado em compras públicas fraudulentas.”
A especialista lembra que “nos municípios de pequeno porte, os mecanismos de controle são mais frágeis”.
“Há pouca imprensa independente, os próprios Tribunais de Contas não têm recursos suficientes para fiscalizar todos minuciosamente, e há escassas estruturas dentro das administrações municipais para detectar desvios e irregularidades”, diz.
Segundo técnicos do Congresso, a diferença também pode ser explicada por dois fatores – a quantidade de municípios de um estado e o número de parlamentares. Ou seja, municípios de alguns estados vão ser beneficiados pela lógica da representação política e da quantidade de cidades.
Um exemplo é Roraima. O estado tem 15 municípios e é representado no Congresso por oito deputados e três senadores. Isso permitiria uma destinação máxima de R$ 216,5 milhões em “Emendas PIX” para o estado – ou cerca de R$ 14 milhões por município.
Metade das emendas individuais
Os valores das emendas individuais foram “turbinados” em 2023 com o fim do orçamento secreto. O montante reservado para a rubrica passou de R$ 10,9 bilhões, em 2022, para R$ 21,2 bilhões.
Para este ano, cada senador tem direito a R$ 59 milhões em emendas individuais, enquanto cada deputado pode indicar R$ 32,1 milhões.
Contudo, como metade das emendas individuais obrigatoriamente deve ser destinada à saúde, um parlamentar pode indicar, no máximo, 50% dos seus recursos na modalidade “Emenda PIX”.
De acordo com o levantamento da Transparência Brasil, os 55 parlamentares que mais indicaram “Emendas PIX” para 2023 são senadores – sendo que sete deles já optaram por encaminhar metade das suas emendas (R$ 29,5 bilhões) – ou seja, o máximo do que poderiam nessa modalidade.
No caso dos deputados, 151 dos 513 optaram por indicar metade das suas emendas individuais (R$ 16,05 milhões) na modalidade “PIX”.