Por Milton Oliveira
Nozinho
Sobre as movimentações agitadas das águas do mar, bem distante da praia, erguia-se o sol alaranjado, dentro do leito de fogo e sangue. Aos poucos, porém, ia perdendo cor escarlate e começava a ficar pujante, como só ele sabe ser.
Deitava sobre as águas revoltas um filete de sangue, comprido e cheio de fascínio, quase um acinte ou um desaforo ao escuro a fugir espavorido.
Furtava-se o sol, por ordem natural, de ser testemunha da tempestade assustadora que caíra na noite que se fora.
A borrasca começou com um vento forte e atrevido. Foi crescendo, crescendo, crescendo. As palhas dos coqueiros gritavam clemência num barulho de causar pena. Os tetos de folhas de zinco voaram nas asas de gritos escandalosos. As casas de madeira, equilibradas sobre a areia mosqueada pelo desleixo humano, ameaçavam ruir, deixando os moradores dominados pelo medo, agrupados sobre a cama de olor característico, convictos da chegada da indesejada de todos.
Passava da meia-noite quando a natureza diminuiu sua fúria.
Pouco a pouco surgiram, no retângulo das janelas abertas, os vultos desgrenhados, olhos injetados de temor, nunca se tinha visto uma fúria daquelas.
E a notícia se espalhou rapidamente:
– O veleiro de Nozinho foi tragado pelas ondas do mar.
Reuniram-se na praia, todos. Olhos perdidos na escuridão do mar revolto. Comentários e lamúrias diversos.
E a presumida viúva chegou carregada pelas mãos dos solidários vizinhos. Cabelos colados à pele macerada. Pingos da chuva misturados às lágrimas abundantes e silenciosas. Suspiros fortes, virgulados de profundo silêncio.
Assim se arrastou, pelo restante da madrugada, a espera, a dor, o pranto.
Estava claro o dia, quando se viu, numa onda distante, bem longe, uma mancha negra a oscilar.
Arregalaram-se olhos, na ânsia de reconhecer os destroços da embarcação do melhor pescador da vila. Em poucos minutos, dúvida alguma existia. O mastro tinha as cores da cobra coral, o Santa Cruz do coração de Nozinho.
E chegou à praia, horas depois, a lateral da embarcação arrastando o que sobrou do mastro despido de bandeira e cordas, trem de angústia e dor. O mar atirou tudo ali, com desprezo, e recuou barulhento, para regressar, no instante seguinte, com a mesma ousadia e destemor, indo e voltando, indiferente ao drama a atormentar as pessoas reunidas na areia, os pés descalços, os corpos quase desnudos.
Pouco a pouco, porém, a multidão foi se desfazendo, cada um levando para casa seu desgosto, sua frustração. Só ficou na praia a pobre mulher de pele lívida, rosto amargurado, olhos injetados de pavor, perdidos na imensidão do mar.
Sem alimenta a menor dúvida a respeito da tragédia, Sabrina se deu por vencida. E os vizinhos guiaram-na de volta ao lar tocado de dor e lembranças duradouras.
O corpo de Nozinho não foi devolvido. Certamente, em reconhecimento por sua bravura indômita, os peixes do fundo do mar cuidaram em lhe fazer enterro solene, digno de um grande pescador.
Uma semana depois um cargueiro americano encontrou um corpo a deriva, tostado pelo sol, clamando por água e comida, sobre os destroços de uma tábua do convés.
Quando Sabrina foi verificar quem batia na porta, àquela hora da
madrugada, quase morreu de susto.
E a vila inteira despertou em festa, que durou o dia inteiro e entrou noite adentro.