Por: Magno Martins
Existem lembranças tão fortes e arraigadas nas nossas mentes que nenhum tempo, por mais implacável que seja, consegue roubar. O apito do trem, para mim, nos anos verdes da minha vida em Afogados da Ingazeira, traz a doce recordação da figura do meu pai comerciante de miudezas em geral. Doze horas de viagem até ao Recife num vagão apinhado de gente, gente com cara de matuto, gente vestida elegantemente de branco, como meu pai, que nos abraçava na volta, empoeirado, trazendo cheiro de cidade grande.
Sob trilhos, em chão batido pelas secas cíclicas que ainda matam gente e animais, subia um poeirão que encardia a roupa do meu pai. Mas o abraço tinha o cheiro também de jabuticaba, de pitomba e, principalmente, de maçã, frutas que meu pai trazia da capital cuidadosamente embaladas para fazer a nossa felicidade. Gastão Cerquinha, meu pai, hoje com 95 anos, sempre foi devotado aos filhos.
Por isso, não canso de reverenciá-lo, de apalpar seu rosto, de passar as mãos em sua cabeça, de beijá-lo, de enxugar suas lágrimas da solidão. Papai ainda é um homem muito cheiroso e elegante. Não sai de casa sem perfume e impecavelmente vestido. Mas voltando ao trem, o de cargas trazia o resultado das viagens do meu pai: caixas e mais caixas empanturradas de mercadorias. Meu pai viveu a vida inteira do comércio. Quis que os filhos prosperassem pelo ramo que aprendeu a ganhar dinheiro. Eu não nasci com vocação para tal empreitada e acabei virando jornalista, outra vocação dele, que escreveu três livros perfilando os personagens da nossa terra, que ama como ninguém.
As caixas davam um trabalho danado de serem abertas. Vinham com arame e pregos. Muitos pregos. A tarefa braçal era entregue a mim e ao meu irmão Marcelo, o Boíba, um ano mais velho. A cada retirada de uma tampa, as surpresas: brinquedos, louças em geral, perfumes, materiais de costura, principalmente botões, linhas de todas as cores, elásticos e bijuterias. Meu pai era um dos mais bem-sucedidos comerciantes de Afogados da Ingazeira.
Para os padrões da época, numa cidade de poucas e raras casas comerciais, era considerado um homem rico. Vendia no atacado e no varejo. A cada janeiro, outra imagem que não me sai da memória: os famigerados e obrigatórios balanços: contar um por um dos produtos que estavam nas prateleiras. Impressionante a paciência de pai e filhos enfileirados contando botão, agulhas, medindo fitas e até contando bolas de gude.
O balanço era a caixa preta da miudeza. Com ele, papai ia para a ponta do lápis para chegar aos finalmente em relação ao lucro do ano anterior. O pior era quando entrava pela noite. Moleque de calça curta, depois de dar umas espiadas nas meninas que arrodeavam a praça num vai e vem incessante a caça de namorado, eu adentrava na loja de papai e lá estava ele, solitário e, pacientemente, agarrado na contagem do balanço.
O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso, existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis. Papai me proporcionou tudo isso. Mário Quintana dizia que a saudade é o que faz as coisas pararem no tempo. Se existe uma idade melhor na vida, o tempo está me mostrando que existe apenas uma para a gente se encantar com a vida – a idade da felicidade. Desfrutar tudo com toda intensidade, sem medo nem culpa de sentir prazer.
Li em algum lugar, de um autor desconhecido: “Bendito quem inventou o belo truque do calendário, pois o bom da segunda-feira, do dia 1.º do mês e de cada ano novo é que nos dão a impressão de que a vida não continua, mas apenas recomeça”. Gosto de escrever sobre recordações, pois me faz lembrar Rubem Alves: a saudade é a nossa alma dizendo para onde ela quer voltar.