O Estranho
Por: Milton Oliveira
Tratava-se de uma noite que eu não tinha outra vontade senão ficar sentado no banco da praça e olhar a vida passar sem pressa alguma. Não sentia tédio, nem revolta; simplesmente deseja que a vida se arrastasse despreocupadamente. Afeito à leitura e ao ato de escrever, sentia-me, naquele momento, tomado de
estranha preguiça, a alma fora de mim. Talvez não fosse preguiça; uma indisposição, um vazio quase desgosto, algo próximo à inexplicável necessidade de ficar só.
De repente, sem que eu soubesse de onde ele saiu, vi-o sentar-se ao meu lado. Cabelos grisalhos, olhos serenos, voz mansa. Sem virar-se para mim, o olhar perdido no espaço, como se fitasse um ponto no infinito, foi falando, insensível ao meu espanto:
– Poucos se quedam, cismativo, junto ao altar da vida; antes, deixam-na passar quase indiferente, como quem observa, pela janela, um carro a correr na estrada, sem ter a mínima preocupação com seus ocupantes e o destino que eles perseguem.
Será que ele está falando de mim? Senti crisparem-se os músculos do meu rosto, num ricto de enfado. Terá percebido como estou me sentindo?
Continuou:
– A vida é feita de circunstâncias e emoções, ponderações e lutas, compreensões e agradecimentos.
Cruzou as pernas, pigarreou, calou-se. Expressão conspícua, tronco empertigado.
Voltou a falar:
– O homem sensato, ao abrir os olhos pela manhã, vendo-se no aconchego do lar, deve agradecer a Deus, porque muitos despertam em leito de hospital e não sabem quando terão alta, talvez nem saiam dali com vida; outros estão recolhidos ao cárcere, absorvidos pela solidão, a revolta e a repulsa social; muitos se encontram esquecidos em hospícios, em casas de repouso, em lares paupérrimos.
Olhou-me com desleixo, parecia não me ter enxergado. Cingiu os olhos, voltou a contemplar o espaço vazio à frente:
– Devemos agradecer a luz que vem da janela, porque há milhares de pessoas que vivem nas trevas e jamais conseguirão ver as cores e distinguir as formas.
Observava o ventre negro do céu, o aquário de estrelas. Ficou em silêncio.
Pensei em lhe perguntar se ele estava falando comigo, mas não deu tempo.
– Ainda na cama e sentindo sono é possível organizar, mentalmente, as tarefas a ser executadas durante o dia, porque a tessitura é a porta primeira dos que não pretendem incorrer em erro. Lembremo-nos que outros nem conseguem pensar direito, falta-lhes o sentido da razão. E, após o café da manhã, alguns saem a caminhar
pelas ruas, cumprimentam amigos e conhecidos, quando se sabe que, não muito longe dali, há quem não tenha o que comer. Outros vivem em cadeira de rodas ou sobre cama desconfortável e com olor nauseabundo. Muitos perderam a paz e não podem ir às ruas. E uma infinidade de gente ainda não usufruiu a dignidade de ter um emprego compensador.
Calou-se.
Retirou do sapato uma mancha de poeira. O lenço amarrotado e com nódoas claras denunciava o uso constante. Virou-se para mim, julguei que ele ia sorrir. Mas não o fez.
Voltou a falar, sempre olhando para frente, como se eu não estivesse ali. Não havia a menor preocupação com a possibilidade de eu não está entendendo seu comportamento inusitado.
– Agregamos à nossa personalidade a falha incorrigível de não saber reconhecer o que nos fazem; e um grave defeito de não agradecer. Falta-nos a sacra humildade da genuflexão ao merecimento. Sequer, percebemos que Deus nos livra dos invejosos, dos desestruturadores da paz e dos arruinadores dos laços familiares – às vezes eles estão do nosso lado, nós nem percebemos.
Olhei-o, aturdido. Mas será possível! Este cara está querendo mesmo me provocar?
Ele não se abalou com minha expressão séria.
– Talvez, numa esquina qualquer, volvemos os olhos à realidade e percebamos o quanto fomos obtusos. Sempre há tempo para mudança. Não custa, então, exercitar, de logo, a serenidade de espírito. Um pouco de boa vontade, de
tolerância, de humildade, é um bom começo.
Assentiu com a cabeça e ficou em silêncio. Gostaria de lhe ter indagado alguma coisa, mas não me ocorreu o quê.
– Façamos isso antes que o turbilhão da dor e do desgosto encontre pálio no nosso âmago angustiado. É possível trocar a lágrima pelo sorriso, a mágoa pelo perdão.
Virou-se para mim. Fitou-me nos olhos. Sorriu.
– Experimente.
Levantou-se e foi embora. Sumiu na primeira esquina da rua. Nunca mais eu o vi outra vez.
Grande Milton Oliveira! Um conto para a vida.