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CRÔNICA DE ADEMAR RAFAEL

A COPA não é culpada.
“19 de dezembro – Amanheci com dor de barriga e vomitando. Doente e sem ter nada para comer. Eu mandei João no ferro velho vender um pouco de estopa e uns ferros. Ele ganhou 23 cruzeiros. Não dava nem para fazer uma sopa. Que suplício adoecer aqui na favela! Pensei: Hoje é meu último dia em cima da terra. Percebi que havia melhorado. Sentei na cama e comecei a catar pulgas. A ideia da morte já ia se afastando. E eu comecei a fazer planos para o futuro. Hoje eu não saí para catar papel. Seja o que Deus quiser.”
O texto acima foi extraído do livro “Quarto de Despejo – Diário de uma favelada”, escrito pela negra Carolina Maria de Jesus, catadora de lixo na favela do Canindé, às margens do Rio Tietê em São Paulo, no ano de 1958.
Como pode ser visto a falta de estrutura hospitalar e de condições dignas de sobrevivência antecede as políticas públicas relacionadas com bolsa família, com o programa “Minha casa minha vida” e os gastos com a Copa do Mundo.
Carolina, por acreditar no futuro mesmo nas condições citadas, viu seu diário ser transformado em livro com o apoio do jornalista Audálio Dantas e viu suas canções, compostas no seu miserável cotidiano, serem gravadas. Mas, viu contingente de amigos sucumbir sob o olhar inerte e insensível da mesma classe social que agora critica os governos, mesmo com os bolsos cheios à custa do sofrimento alheio e das benesses recebidas em negócios com o poder público.
Atribuir nossas mazelas aos gastos com a Copa do Mundo é negar que fizemos uma abolição dando dinheiro aos ex-donos de escravos e abandonando os “libertados”, é fazer vistas grossas para um sistema perverso de governo, sempre em favor dos abastados e fazer de conta que não existe uma barreira intransponível para os moradores da periferia.
Pena que as pessoas mais sofridas, que menos acessam os saberes e os recursos disponíveis estão sendo, mais uma vez, manipuladas em movimentos que visam devolver o poder aos que pouco fizeram em seu favor. Deveriam sim está à frente de um movimento para ampliação das conquistas sociais obtidas com muita luta e pouca vontade política.
A manada está solta, os capatazes estão observando à distância, os moradores da casa grande assistirão a copa em TVs de última geração e os moradores das favelas continuarão servindo de isca para os traficantes, os turistas e os maus políticos. A culpa é da COPA, ou nossa?^
Por: Ademar Rafael 

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